SOU GAÚCHO LÁ DOS CONFINS DA FRONTEIRA
As lendas do nosso Brasil são inúmeras e fascinantes, especialmente nas
regiões mais afastadas do burburinho das grandes cidades. Vagueiam pelos
rincões e pelas matas, onde vivem na voz dos contadores, que com imaginação
fértil transportam mentes por céus, terras e mares, perpetuando saberes através
da crendice popular.
Em uma viagem de férias ao Sul do Brasil, mais precisamente à charmosa
cidade de Gramado, na Serra Gaúcha, vivi uma dessas experiências que parecem
saídas de um livro — ou de um sonho. Naquela noite gelada, saímos de um
concerto musical e, para aquecer a alma, decidimos tomar um chocolate quente.
Fomos orientados por um local a caminhar até a famosa “Rua Coberta”.
Seguimos a pé. Logo percebemos a estrutura característica: telhas em arco
formando uma cobertura sob a qual turistas se aconchegam em bistrôs e bares,
embalados por apresentações culturais. Um grupo de jovens, trajando os trajes
típicos da região, animava o ambiente com canções folclóricas. Ao lado, uma
fogueira ardia lentamente, cercada por espetos com carnes suculentas — aroma
inconfundível da paixão gaúcha pelo churrasco e pelo chimarrão.
Em um momento especial, o cantor — alegre e altivo, com botas altas e um
cajado que mais parecia um bastão mágico — executou um sapateado vibrante sobre
o tablado de madeira. Aplausos ressoaram. Depois, com sotaque carregado de chão
e história, anunciou a próxima canção: “O Negrinho do Pastoreio”,
uma lenda do sul que, segundo ele, jamais deveria ser esquecida.
A plateia, encantada, pediu que ele contasse mais. Com um brilho nos olhos,
ele começou:
“Sou gaúcho lá dos confins da fronteira, terra de bugre bravo e de lenda
forte…”
E contou. Contou que no tempo da escravidão, um senhor poderoso possuía uma
tropa de cavalos que era seu orgulho e sustento. Seu filho — mimado, preguiçoso
e cruel — não herdara o gosto pelo trabalho, mas herdara o capricho de judiar
do mais fraco. E foi assim que o Negrinho do Pastoreio, esperto menino cativo,
recebeu a ingrata tarefa de cuidar da tropa, liderada por um belo cavalo baio.
Certa vez, o filho do fazendeiro espantou os animais de propósito. O menino
não conseguiu recuperá-los. Acusado e injustamente punido, foi levado às
coxilhas à noite e, ao não reencontrar a tropa, foi brutalmente chicoteado e
deixado nu sobre um formigueiro.
Três dias depois, o fazendeiro retornou e, para seu assombro, encontrou o
menino ileso ao lado dos cavalos, protegido por Nossa Senhora. Nascia ali a
lenda do Negrinho do Pastoreio — guardião dos animais e das coisas perdidas.
Naquele instante, a rua escureceu. As luzes apagaram-se. Levei a mão ao
bolso e percebi a falta da minha carteira. Pedi uma vela ao garçom e a acendi,
como manda a tradição. Senti então algo sob meu pé: a carteira! Teria sido
milagre? Coincidência?
Foi quando um tropel de cavalo ecoou pela rua. Vimos surgir da escuridão o
Negrinho montado em seu cavalo baio. As ferraduras faiscavam no asfalto. Ele
parou diante de mim e disse:
“Pois é, senhor... encontrou sua carteira, né? Ouvi seu pedido. Vim mostrar
minha força — para que continuem acreditando na lenda.”
“Obrigado”, respondi. “Mas... quem é você?”
“Faço parte do grupo de teatro que se apresentou na peça que vocês
assistiram.”
E, montado em seu baio encantado, galopou rua afora, saudando os presentes e
deixando para trás um rastro de emoção.
O churrasco foi servido. Peguei minha carteira — que estava no bolso, pronta
para pagar a conta. Foi então que acordei.
Estava no hotel. Ao meu lado, sobre o criado-mudo, repousava um prospecto
turístico: naquela noite, haveria uma peça teatral sobre lendas gaúchas, com
passeio à Rua Coberta e chocolate quente.
Nossa cultura é feita desses mistérios. Os nomes variam, os sotaques mudam,
mas as histórias sobrevivem, encantam e ensinam. São um tesouro que deve ser
cultivado nas escolas, passado adiante — de geração em geração — para que não
se percam no tempo.
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