O retorno à Rua Encantada
Foi num dia desses, ao percorrer a velha Rua Zacarias de Góes, que senti o passado sussurrar em meus ouvidos. Como um vento familiar que atravessa os anos, a nostalgia tomou conta de mim. Parei diante da casa número 67, onde passei tantos anos da minha infância. A fachada, embora marcada pelo tempo, permanecia quase inalterada, e ali, naquele instante, a vida fez um movimento curioso: voltou-se para trás e me permitiu reviver dias que pareciam adormecidos, mas nunca esquecidos.
Família, encontros e tradição
A rua era o coração pulsante da família. Dentro de dois quarteirões,
primos, tios e avós se conectavam como se aquele pequeno mundo fosse nosso
reino particular. Nos almoços fartos, a mesa se tornava campo de batalha dos
mais velhos, que jogavam truco com gestos exagerados e gritos em italiano. O Campo "bocha", administrado pelo meu avô “Tonella”, era motivo de orgulho e disputa
acalorada, onde cada jogada exigia precisão quase cirúrgica. E, claro, tudo
terminava com rodadas de vinho, cerveja e cantorias melancólicas que evocavam a
distante Itália.
Travessuras e pequenos delitos inocentes
A infância era feita de ousadia e descobertas. No salão do tio João
"Barbeiro", a meninada se acomodava como fregueses folgados, coçando
a cabeça do velho pássaro-preto até que ele soltasse aquele grito estridente
que se espalhava pela rua. O futebol no campinho da Avenida Paula Penteado era
um espetáculo à parte: bolas furadas pelos vizinhos, vidraças quebradas,
broncas memoráveis. Mas os furtos de jabuticaba, ah! Esses eram uma arte. Entre
cercas e galhos, disputávamos cada fruta como pequenos caçadores, até que um
dia recebemos tiros de sal – mas isso nunca nos impediu.
Os personagens que moldaram o bairro
Além da família, o bairro abrigava figuras inesquecíveis. O Zé Preto,
com seu ranchinho e sua horta, vendia verduras para minha mãe enquanto
despertava uma curiosidade ingênua em nós, com seu porte imponente e feições
marcantes. O Boia Béstia, motorista aposentado, se dedicava à criação de
canários que eu adorava alimentar. Havia também o tio Nicola, cuja marcenaria
era um mundo à parte. Lá, as confusões eram inevitáveis, e bastava uma
provocação para sua careca brilhar de raiva, resultando na expulsão sumária dos
meninos travessos.
Festas e celebrações que uniam a vizinhança
Quando junho chegava, as festas da Dona Nenê transformavam a rua em um
cenário vibrante. O aroma de quentão e bolo de fubá se espalhava, as luzes dos
rojões iluminavam o céu, e as rezas aos santos Pedro, João e Antonio uniam os
corações. Mas nem tudo era inocente: o Zé Preto, encarregado dos foguetórios,
emprestava alguns para os meninos que, sorrateiros, os soltavam no quintal dos
vizinhos que ousavam furar suas bolas no campinho.
O mistério da Ponte Torta
Havia um limite no mundo de um menino: a curva da Avenida Paula
Penteado. Além dela, começava o território desconhecido. O Grupo Escolar
Siqueira de Moraes era a primeira razão para ultrapassá-la, mas havia algo
ainda mais intrigante – a Ponte Torta. Minha mãe sempre alertava sobre o perigo
daquele local, e por muito tempo, só pude imaginar seu formato. Seria mesmo
torta para baixo? Poderia cair no rio? Essas perguntas ocupavam minha mente até
que, certo dia, desafiei meus próprios medos e caminhei até lá.
Lá estava ela. Um arco imponente sobre o rio Guapeva, coberto pelo mato
que crescia em suas margens. O tempo o havia conferido uma aura antiga e
solene. Percebi que, além de suas pedras envelhecidas, ela guardava histórias
dos imigrantes que a cruzaram, do bondinho puxado por animais, das vidas que
por ali passaram. A Ponte Torta não era apenas uma estrutura: era um testemunho,
um elo entre o passado e o presente.
Memórias que nunca se apagam
Hoje, ao revisitar essas lembranças, vejo que o tempo não apaga nada.
Ele apenas move as peças do tabuleiro, transformando memórias em marcos
eternos. A Rua Zacarias de Góes, o campinho, as vozes dos tios e primos, os
gritos do truco e a melodia dos canários – tudo isso ainda vive dentro de mim.
A Ponte Torta permanece como um símbolo da infância, onde um menino, curioso e
destemido, desafiou os limites do próprio mundo para encontrar histórias que
jamais seriam esquecidas.
Se hoje meus textos ressoam mais, se envolvem mais, se alcançam mais corações, é porque sigo me dedicando a aprimorar minha forma de contar histórias. E é essa jornada de aprendizado e aperfeiçoamento que desejo compartilhar com vocês!