A manhã estava fria, nuvens
cinzentas e carregadas pairavam no ar, trazendo rapidamente sobre a minha
moradia, uma garoa intermitente, aumentando o clima frio que perdurava por
vários dias, molhando suavemente a triste vegetação que ornamentava as calçadas
das ruas, por falta do precioso líquido, que deu origem à vida em nosso planeta.
Olhei pela vidraça e enxerguei
a rua deserta: nenhuma porta aberta, as janelas das casas vizinhas,
completamente fechadas, indicando que as pessoas permaneciam reclusas, naquela
manhã de domingo.
Não saí para comprar o
tradicional jornal, apanhei o da semana anterior e comecei a esmiuçar as notícias
que ainda não tinha focado, para um melhor reparo. Passei pela folha do obituário
e li o nome de uma pessoa conhecida, um homem que contou para uma plateia, na
qual me encontrava, uma lenda muito bonita sobre o pássaro Uirapuru, considerada
um amuleto, destinado a proporcionar a felicidade nos negócios e no amor.
Com aquele pensamento, coloquei
uma carga de lenha na lareira, acendi o fogo e sentei-me no sofá da sala de
estar. Fiquei vendo as labaredas, que soltavam estalos emocionantes,
despertando a imaginação sobre as lendas, transformando o ambiente convidativo,
próprio daquele dia frio, lembrando os mitos das florestas, que meu avô Tonella
também contava para a meninada.
Um pequeno rolo de fumaça,
por algum defeito no respiro, começou a se concentrar no alto da viga mestre, hipnotizando
o local e desenhando uma espécie de um arco em terceira dimensão.
Comecei a ver lá de dentro,
um vulto que foi ganhando corpo, era uma espécie de figura humana. Para o meu
espanto, percebi que era o querido Tonella. Veio das entranhas do mundo,
carregando seus inseparáveis apetrechos para fazer aquele cigarro de palha, que
muitas pessoas chamam de “picadão”, enquanto narrava às histórias.
Saltou daquele arco, fincou os
pés na sala e foi acomodar-se na velha cadeira de balanço, onde nós, meninos na
época, sentávamos no tapete e ficávamos ali compenetrados, ouvindo as suas
belas histórias. Tinha dia que um primo aqui outro acolá, não ia embora, com
medo dos personagens. Ficavam lá em casa no quarto que eu e meu avô dormíamos.
Com a mente em transe e com a
presença de sua figura virtual muito pertinho, lembrei-me do dia que contou uma
historia, envolvendo uma lenda do folclore brasileiro, tendo como personagem o
famoso Saci-Pererê. Aprumou-se na cadeira e com suaves balanços, apanhou o
saquinho de fumo que trazia preso à cintura, tirou uma porção, enrolou em uma
palha de milho seca, acendeu o “maldito” que o matou de asma e soltou enormes
baforadas que entravam em nossos olhos e cabelos.
Começou a narrativa:
- Olha, molecada, eu vou
contar, mas não quero ninguém com medo e mijando nas calças.
- Não “nonno” (avô), pode contar
que não temos medo, já somos moleques grandes.
Ele começou a enfeitar
bastante, até que no momento o som produzido por outro estalo da lenha na
lareira, ensejou a oportunidade de outro alguém sair daquele arco enfumaçado; foi
à figura do Saci. Veio pulando com uma só perna e foi sentar no colo do
Tonella.
- Tonella disse:
- Seu moleque do inferno, de
onde você saiu?
- “Vosmicê falô di eu, entâ
vim qui, pra mór docê num fala mintira”.
Então, Tonella, sabendo que o
moleque falava muito palavrão, pediu só para ficar ouvindo.
- Ô Saci! - Falou Tonella -
você anda assustando os cavaleiros aqui da comarca, que viajam à noite?
- “Quá nada, véio lazarento,
gosto mermo é de ficá oiando eles perdê o rumo, pra eu sortá mia gargaiada”. Agora
mi dá um fumo aqui pru mio cachimbo, pra sortá fumaça iguá o sinhô”.
- Não, já tem muita fumaça
aqui, me dê aqui o seu cachimbo. Se quiser pode abrandar o fogo da lareira.
- “U qui é isso, um fazedô di
churrasco?” E, olhando para o fogo, soltou uma cusparada, meio de longe, igual àquelas
cagadas de pato.
Tonella, já meio sem
paciência, deu um puxão de orelha no neguinho, tirou seu capuz vermelho,
amarrou suas mãos e mandou ficar no canto da sala, olhando o fogo.
- Então, meus meninos, disse
Tonella, eu vou contar mais coisas desse moleque...
Ele adora fazer travessuras, como esconder
brinquedos, soltar animais nos currais, derramar sal nas cozinhas, fazer
tranças nas crinas dos cavalos. Não atravessa córregos e nem riachos. Tem
poderes mágicos como o de aparecer e desaparecer onde quiser.
-Transforma-se também numa
ave chamada “matita perê”, ou “sem-fim”, como é conhecido no Nordeste, cujo canto
melancólico ecoa em todas as direções, não permitindo a localização. Se estiver
ainda dentro de um redemoinho, num rosário de mato bento ou uma peneira, pode
ser capturado e, caso consiga pegar sua carapuça, pode realizar um desejo. Se
alguém for perseguido por ele, deve jogar em seu caminho, cordas ou barbantes
com nós, para que ele os desate, dando tempo da pessoa fugir.
- E para terminar, digo que
essa lenda é do século Dezoito, e durante a escravidão, as amas-secas e os
caboclos assustavam as crianças com as travessuras desse moleque. Seu nome é de
origem Tupi-Guarani. É considerado um brincalhão, enquanto que em outros
lugares é visto como uma pessoa má.
Com o final do relato do
velho Tonella, olhei para aquele arco que ainda estava envolto por uma fumaça e
enxerguei o meu pai Vico, chamar de lá dentro o meu avô, que o pegou pelo braço
e foram embora pelo túnel do tempo. O Saci correu e passou na frente dos dois
para pegar o cachimbo que tinha ficado no bolso do Tonella, e sumiu de repente.
Nesse momento, escutei a
campainha tocar, notei pela janela que meu filho Alexandre, a nora Edilaine e o
netinho Augusto, mais minha filha Erika e o marido Guará e o meu primeiro neto,
o Lucas, vieram tomar o café matinal com os avós do costumeiro domingo.
Antes que se assentassem no
tapete, olhei para o canto da sala e percebi que a cadeira onde o Tonella
estava, agonizava em um vaivém. Tomei o assento rapidamente e comecei a narrar
uma história, esperando que ainda eu possa viver mais um tempo para continuar
balançando a velha cadeira e que não tenha que vir do passado para falar das
coisas presentes que ainda posso contar.