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| O "CABRA" LAMPIÃO VIRGULINO |
Durante uma viagem de recreio com a família à encantadora Aracaju, capital de Sergipe — fundada em 1855 e uma das primeiras cidades planejadas do Brasil — notei que suas ruas centrais formam um curioso tabuleiro de xadrez. Em um city tour, visitamos a Catedral, a Colina de Santo Antônio — com vista panorâmica da cidade — a Praia de Atalaia e o Mirante do Calçadão da 13 de Julho, onde se localiza o Mercado Municipal, que me fascinou.
Bem-vindo ao Vendramini Letras — um espaço onde a palavra é servida com
café, pão e saudade. Aqui, cada texto vem depois de um gesto simples: uma
receita compartilhada, uma flor plantada, uma lembrança acesa. É um convite à
pausa, à escuta e ao sabor da vida como ela é — com afeto, raízes e poesia.
Sinta-se em casa.
Comentei com minha esposa que deveríamos voltar ao mercado para explorar melhor suas peculiaridades culturais. Havia muito folclore, artesanato e um contador de histórias que me encantou. Em outro dia, seguimos rumo aos Cânions do Rio São Francisco, atravessando terras áridas até o projeto de irrigação chamado Califórnia, onde o contraste é surpreendente: plantações de quiabo, uva, acerola, coco, maçã, feijão e mais. Às margens do “Velho Chico”, ergue-se a imponente Usina Hidrelétrica de Xingó, com um reservatório de 60 km² que forma cânions de beleza estonteante.
O passeio foi feito em um catamarã. Admiramos paisagens deslumbrantes, como a Gruta do Telhado. No retorno, visitamos o Museu de Arqueologia, com acervo oriundo das escavações do reservatório. Já embarcados de volta, ouvimos o cicerone narrar com entusiasmo que, dois dias antes, na cidadezinha de Piranhas — a cerca de 20 km dali — houve uma missa em homenagem à morte de Lampião.
Palavras no texto em negrito são
portais — clique e explore.
Segundo ele, foi uma grande concentração popular, com gente de todos os cantos, celebrando o cangaceiro e seu bando. Ali perto, Lampião foi morto junto a seus companheiros, tendo a cabeça decepada pelos “volantes”, como eram chamados os policiais da época. O cicerone contou passagens da vida do bandoleiro, despertando minha curiosidade sobre esse personagem que se tornou lenda no sertão.
O pacote turístico incluía almoço em um restaurante rústico à beira da represa. Ao nos aproximarmos das mesas, o cicerone anunciou:
— Após o almoço, não deixem de conhecer Dona Expedita, filha de Lampião, que os receberá com sua filha Vera.
"Cada clique nos anúncios é um empurrãozinho para que eu continue
criando. Obrigado por apoiar!"
A senhora, que vive em Aracaju, é dona do restaurante e foi uma atração à parte. Contou que, ao nascer, foi entregue pelo pai a um casal com onze filhos. Até a morte de Lampião e Maria Bonita, foi visitada por eles apenas três vezes. Disse:
— Eu tinha medo das roupas e das armas, mas meu pai era carinhoso e sempre me colocava no colo para conversar.
No retorno a Aracaju, fiquei pensando em saber mais sobre a lenda que atravessa as fronteiras de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Bahia. Lembrei-me do contador de histórias do mercado e, no último dia da viagem, voltamos lá.
O mercado é um espetáculo nordestino: lojas, barbeiros, cabeleireiras, manicures, vendedores de queijo, castanhas, manteiga de garrafa, artesanato, grupos de forró, dançarinos e tocadores de berimbau. Fui direto à bancada dos causos e lendas. Lá estava ele, cercado de gente e até repentistas. Conheci João Firmino Cabral, mestre da literatura de cordel, cujas obras são celebradas pelo povo.
Naquele momento, lia trechos do livreto “Lampião – Herói ou Bandido”. Ouvi com atenção e, ao final, comprei um exemplar com dedicatória. Trocamos cartões e falei da minha paixão por escrever. Confesso que, de herói, vi pouco. João contou que, certa vez, Padre Cícero mandou um recado a Lampião:
— Virgulino, meu afilhado, venha urgente! A Coluna Prestes quer invadir Juazeiro, saquear a cidade, queimar o mercado e matar o povo romeiro.
Lampião atendeu ao chamado. Entrou em Juazeiro e, ao saberem de sua presença, os invasores recuaram. Em agradecimento, o prefeito lhe concedeu o título simbólico de Capitão. Ao partir, cantava pelas ruas:
— O meu nome é Virgulino, mas me chamam Lampião, e agora sou capitão!
Criado com sete irmãos — três deles seus companheiros de cangaço — sabia ler, escrever, tocava sanfona, fazia poesias, usava perfume francês e era habilidoso na costura de couro, confeccionando seus próprios chapéus e indumentárias. Os acessórios eram transpassados pelo pescoço, daí o nome “cangaço”, derivado de “canga”, peça que prende o boi ao carro.
Na madrugada de 28 de julho de 1938, na Grota do Angico, margem sergipana do São Francisco, uma tropa alagoana surpreendeu o bando. O combate durou poucos minutos. Entre os onze mortos, estava o temido Virgulino Ferreira da Silva.
Era o fim da saga do pernambucano de pele queimada, cabelos crespos, braços fortes e quase cego do olho direito. Um “cabra” destemido, que invadia sítios, fazendas e até cidades. Entrou no cangaço após o assassinato do pai, em 1920, por um volante. Ele e três irmãos juraram vingança e se uniram ao bando de Sinhô Pereira. Quando este foi perseguido, passou o comando ao jovem Virgulino, então com 24 anos. Nascia o lendário Lampião.
Foram oito anos de perseguições pela caatinga até sua morte. Decapitados, suas cabeças foram expostas na escadaria da Prefeitura de Piranhas. Lampião tinha 40 anos. Muitas lendas surgiram com sua morte. Uma delas fala de um tesouro enterrado no sertão. Dizem que levava 5 quilos de ouro e o equivalente a 600 mil reais em dinheiro. Só no chapéu, ostentava 70 peças de ouro puro.
Mesmo após sua morte, Virgulino Ferreira da Silva, o menino do sertão que virou Lampião, permanece vivo na memória popular. Sua história extraordinária parece destinada a nunca ser esquecida.
E depois de tudo o que ouvi e li, não poderia encerrar esta crônica sem deixar fluir um conto que brotou da minha imaginação…
🌶️ Entre a História e o Cordel
O Sabor do Sertão
Antes de seguir com o conto que brotou da minha imaginação, quero abrir espaço para um tempero especial. Afinal, o cangaço não se fazia só de peixeira e poeira — havia também o cheiro forte da comida feita no mato, com o que se tinha à mão: um pedaço de caça, umas raízes, um punhado de farinha e muita coragem.
Dizem que Lampião, apesar de feroz, era exigente com a comida. Quando o bando acampava, os cabras se viravam com o que encontravam: uma perdiz, um tatu, às vezes até uma cobra. E com isso, faziam um ensopado que sustentava homem valente por dias.
Aqui vai uma receita inspirada nesse espírito — um prato que poderia ter sido servido sob a luz da lua, entre espinhos da caatinga e histórias ao pé do fogo.
🥘
Ensopado de Caça do Cangaço
(com perdiz ou carne de cobra)
Ingredientes:
• 1 perdiz limpa (ou 500g de carne de cobra bem lavada e cortada em pedaços)
• 2 colheres de gordura de porco ou óleo de coco babaçu
• 1 cebola roxa picada
• 3 dentes de alho amassados
• 1 pimenta-de-cheiro (ou dedo-de-moça, se quiser mais ardência)
• 2 tomates maduros picados
• 1 colher de chá de colorau
• 1 folha de louro
• Sal a gosto
• Cheiro-verde ou coentro picado (se tiver)
• 1 litro de água quente
• Farinha de mandioca para acompanhar
Modo de preparo:
1. Em uma panela de ferro (ou caldeirão de acampamento), aqueça a gordura e refogue a cebola, o alho e a pimenta.
2. Acrescente os pedaços da caça e deixe dourar bem.
3. Junte os tomates, o colorau, o louro e o sal. Misture tudo.
4. Cubra com água quente e deixe cozinhar por cerca de 40 minutos, até a carne ficar macia e o caldo encorpado.
5. Finalize com cheiro-verde ou coentro, se tiver.
6. Sirva com farinha de mandioca e, se quiser manter o estilo do cangaço, coma com as mãos e ao redor do fogo.
👹
Esse prato é mais que sustento — é memória viva do sertão. E agora, com o estômago cheio e o coração aquecido, seguimos para o conto que imaginei sobre Lampião e o “Lamparina”
Lampião e o “Lamparina”
O povo de uma pequena cidade já não aguentava mais os ataques do bando de Lampião. A vila ficava bem na rota de fuga e esconderijo dos cangaceiros, e sempre que passavam por ali, deixavam um rastro de destruição. O prefeito era obrigado a liberar o depósito de mantimentos — destinado às famílias mais pobres — e, no meio da balbúrdia, as casas eram invadidas, as mulheres desrespeitadas, e ainda tinham que preparar comida para aqueles homens brutos.
Cansado da situação, o prefeito decidiu contratar uns jagunços para proteger a cidade. Eles se acamparam no galpão da Prefeitura, prontos para qualquer eventualidade, pois sabiam que Lampião voltaria em breve para mais uma estripulia.
Numa noite escura, o bando se aproximou da cidade. Lampião resolveu acampar ali mesmo, ao pé do fogo, e mandou o cabra Azulão levar um bilhete ao prefeito. O bilhete dizia:
— Seu filho de uma égua, amanhã quero cinco contos de réis na minha algibeira e comida pros meus meninos. Não tente me enganar, senão corto suas orelhas e sua língua, seu corno dos infernos.
Azulão partiu. Ao chegar à cidade, percebeu algo diferente: em cada entrada havia um jagunço armado. Conversou com um deles:
— Estamos aqui a mando do prefeito, pra espantar o bando de Lampião.
Mesmo assim, Azulão foi até a Prefeitura e entregou o bilhete. O prefeito respondeu:
— Manda o Lampião ir tomar no rabo! Aqui quem manda sou eu. Que venham, se tiverem coragem. Agora tenho proteção.
Azulão voltou e contou tudo. Lampião ficou furioso:
— Quantos cabras tem na vila?
— Sei não, capitão. Tem gente escondida, não contei.
— Seu inútil! — gritou Lampião, dando-lhe um chute no traseiro. — Não serve pra nada!
Logo mandou mais alguns homens descerem o morro para analisar a situação. Os jagunços, ao perceberem que se tratava de homens de Virgulino, bateram em retirada. Só o chefe, que dormia no galpão, ficou para enfrentar o bando no dia seguinte.
Lampião mandou seu irmão, Bico-Fino, verificar o terreno. Voltou dizendo:
— Meu irmão, só tem um cabra. Os outros fugiram.
— Então vamos! Quero ver a mulherada e encher a pança.
O bando invadiu a Prefeitura de supetão. O prefeito, desesperado, gritou para o chefe dos jagunços:
— Dê um fim nesses bandidos! Aproveitadores de mulher!
O chefe, sozinho, abriu a janela e chamou:
— Venham aqui! Vamos acabar com eles!
Silêncio. Ninguém respondeu.
Ele correu para o meio da rua e lá estava Lampião, esperando com a peixeira na mão. O jagunço, até então valentão, começou a urinar nas calças. Lampião disse:
— Ué, seu frouxo, tu não é macho? Sabe com quem tá falando? Sou o temido Capitão Virgulino, o Rei do Cangaço. E tu é quem?
Todo encolhido, ajoelhado aos pés de Lampião, respondeu:
— Sou o Lamparina... o Rei do Cagaço.
E assim acabei de criar mais uma estória, como tantas outras que povoam o imaginário sobre essa figura fascinante que continua viva na memória do povo sertanejo.
Um passeio por memórias, afetos e encantamentos.
Este meu
blog não tem capa dura nem páginas numeradas.
Ele vive
nas entrelinhas do tempo.
Cada texto
é uma fresta — por onde escapa o que ainda pulsa.
Escrevo
como quem conversa com o silêncio.
Como quem
guarda o mundo em palavras pequenas.
Como quem
acredita que lembrar é uma forma de amar.
😀
Antonio Toninho Vendramini Neto
Escritor | Criador de conteúdos culturais
📬 Abaixo, - outro espaço de
cultura e amizade - clique e divirta-se.
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