No auge do segundo tempo, num avanço do Pelé, a voz do locutor “sumiu”. Foi
uma loucura! As pessoas gritavam para o Serafim “acertar o rádio”; com a
gritaria, não sabia se aumentava o volume ou servia os famosos “rabo-de-galo”
(mistura de pinga com fernet); ele, inclusive, estava “tão-alto” que já não
cobrava mais nada pelos petiscos que comíamos e as bebidas dos mais velhos
sorvidos a cada gol do Brasil, naquele dia memorável.
Após o término do jogo, subi na carroceria de um caminhão que passava pela
rua lotada de alegres pessoas e rodamos pela cidade afora, festejando a
conquista, chegando em casa tarde da noite, para o desespero de meus pais.
No dia seguinte fui até o botequim para saber das novidades que ainda
repercutiam sobre o jogo, pois o Serafim era o repórter da rua: sabia de tudo o
que acontecia na cidade. Ouvi o português contando que o Diabo havia atacado
algumas mulheres da Tecelagem Japy, que ficava lá pelas bandas da Vila Arens.
O fato tomou enorme proporção e era assunto em todos os lugares da cidade,
de tal forma que foi noticiada até no jornal, dando conta de uma situação
sinistra, assustando a população; fato que ocasionou uma investigação pelo
delegado Joaquim Linguiça, que não constatou nada de anormal no local do
“ataque” do Diabo: um pequeno capão de mato por onde as mulheres caminhava até
chegar ao portão da Tecelagem.
A rádio local noticiava o episódio, entre um programa e outro, estranhando o
fato do “Doutô Delegado”, não ter resolvido o caso. Passada uma semana, o
assunto voltou à baila; o Diabo havia atacado outra vez e, agora, com relato
detalhado das trabalhadoras da tecelagem: que ele se vestia de vermelho e
rodopiava no ar uma capa preta esvoaçante, e seu rosto, com uma aparência
horrível, também soltava urros impressionantes, assustando a mulherada, que até
urinavam nas calças.
Serafim estava empolgado com o assunto e todos iam ao seu boteco saber dos
detalhes. Sim, porque ele incrementava as notícias da rádio que ele ouvia sem
cessar. Falava que a mulherada estava indo trabalhar, acompanhada de seus
maridos e filhos, porque, nesse tipo de fábrica, a mão-de-obra era constituída,
em sua maioria, só de mulheres. O contingente maior era de senhoras com muito
tempo de serviço; eram hábeis teceloas, porém, com o decorrer da idade, não
produziam mais o necessário, preocupando o dono da fábrica, de nacionalidade
turca, chamado Salim.
Dentro da fábrica, o gerente “Seu Jorge”, não tinha mais como segurar a
situação, as senhoras não queriam mais vir trabalhar. Com muito custo foi
preciso a intervenção da Administração, que era o popular “Gerubal
Pascoal-Chefe do Pessoal”, que conseguiu persuadi-las, alegando que ia
providenciar uma proteção policial, lá na trilha do mato, que traria as
mulheres até o portão da Tecelagem.
Nos dias que se seguiram, a rotina da fábrica estava completamente alterada;
uma vez por causa do Diabo, outra, pela baixa produção, pois o Salim não
conseguia atender aos pedidos de vendas dos tecidos. Então ele chamou o gerente
Jorge e o Gerubal para uma reunião especial e falou:
·
Eu quero esse assunto da baixa produção
resolvido; eu já estou cansado de falar, não dá para ficar mais segurando essas
senhoras que não produzem o suficiente; é melhor aproveitar esse negócio do
Diabo que não sei de onde surgiu, e pressioná-las a pedir demissão. Gerubal
pediu a palavra e falou:
·
Seu Salim, eu já fiz isso e elas não querem
perder a indenização que é dobrada; quem tem mais de dez anos de casa, recebe
vinte pela Lei. Furioso Salim disse: -
·
Eu não tenho dinheiro para pagar as contas;
vocês têm que resolver o assunto, senão eu mando embora vocês, que fica mais
barato.
Depois dessa conversa, no dia seguinte, o Diabo voltou a atacar e o Turco
Salim estava gostando do assunto, porque algumas delas não vinham mais
trabalhar; até telefonou para a rádio e disse que não precisava ficar
anunciando para todo mundo esse negócio do Diabo, era um assunto interno que
ele ia resolver de um modo bem satisfatório.
A estação de rádio parou de noticiar, mas, na polícia, o assunto estava
fervendo, porque pessoas das famílias tinham ido dar queixa, e já no dia
seguinte, dois guardas foram destacados pelo Delegado, para ficarem de
prontidão na boca da mata, dando guarida para a mulherada. Lá pelas quatro e
trinta da madrugada, um dos guardas que acompanhava o pessoal escutou um
terrível urro que veio lá do meio do mato: “é o Diabo, gritou a mulher que
puxava a fila”. Foi um corre-corre danado... A mulherada acompanhada de um dos
guardas conseguiu chegar até o portão; algumas “molhadas”, outras perderam os
chinelos, o almoço que traziam nas marmitas foi perdido pela trilha. O outro
guarda, que era um valentão, foi à procura do Diabo no meio do mato e, ao ouvir
aquele urro, deu no pé e foi para a portaria da fábrica.
Os guardas chegaram da fábrica lá na Delegacia e relataram tudo ao
“Doutô-Linguiça”, que, louco da vida, começou a desatinar, chamando-os de
medrosos, incompetentes e outras coisas mais.
·
“Mais doutô”, eu não vi o Diabo, só escutei o
urro. O outro já falou que viu, ele estava de vermelho, botas pretas e parecia
ter umas orelhas compridas e cabelos encaracolados. Acho que era isso, disse,
mas estava meio escuro, pois a entrada do turno da manhã começava às cinco
horas.
Joaquim Linguiça estava muito pressionado pelo jornal e a rádio, que não
noticiavam outra coisa, que não fosse o ataque do Diabo na mulherada da
Tecelagem Japy. Na delegacia, chamou um jagunço que prestava serviços ao
Delegado, para “casos especiais”, era um mulato grande e forte. Joaquim o
chamou no canto da porta, fechou a janela e disse:
·
Ô cabra! Quero esse assunto resolvido. Você vai
lá e, se não puder com o bicho, dê uns tiros para o alto para espantá-lo. Cheio
de coragem, o destemido Epaminondas municiou-se de dois revólveres trinta e
oito, colocou-os na cinta e foi para o local, “ficar de tocaia”, fazendo isso
todos os dias na hora da entrada do pessoal.
Lá na fábrica, o turco Salim vibrava com as notícias de que as senhoras não
vinham mais trabalhar e outras pediram demissão e até mudaram de cidade.
Chamou, então, o Gerubal e falou:
·
Gerubal, esse Diabo tem trazido sorte para nós.
·
É mesmo, Seu Salim, já tem doze que pediram as
contas e mais umas vinte faltando.
·
Mas Gerubal, como é que esse negócio de Diabo
apareceu por aqui?
·
Eu não sei, patrão, está bom assim, não é mesmo?
Agora não vai mais me mandar embora, não é?
·
Claro que não, disse Salim, só precisamos que
mais umas trinta peçam demissão.
·
Tudo isso? Só se o Diabo atacar novamente.
·
É, faça as suas rezas, quem sabe ele lhe ajude,
você já está recrutando moças para o lugar das que já foram?
·
Sim, Seu Salim, as mocinhas estão trabalhando e
com uma produção muito boa, conforme relatou o seu Jorge.
Salim estava contente, apesar da desgraça e a fama repentina que sua fábrica
tomou; o nome da Japy tinha chegado até nas cidades vizinhas e a notícia chegou
até ser veiculada na capital São Paulo, em uma estação que só transmitia
novelas.
Passada uma semana, o Diabo não atacava mais; parecia que tudo estava
voltando à calma, havendo até disputas das jovens mocinhas para o lugar
daquelas que tinham pedido demissão. Algumas daquelas que não vieram mais, com
a calmaria, começaram a voltar, preocupando novamente o Sr. Salim.
Chamou o Gerubal e pediu providências, dizendo que se elas voltassem, era
para dizer que o diabo poderia atacá-las, porque ele havia marcado a
fisionomia... E assim, se viu novamente pressionado pelo patrão.
Terminado o expediente, foi para a casa muito preocupado e, durante algumas
noites não dormiu direito, porém, sabia que ele mais o Seu Jorge tinha que
fazer alguma coisa.
Uma bela manhã, a fila da volta das antigas empregadas havia aumentado e, no
dia seguinte, o Diabo voltou a atacar, mas o Epaminondas estava na espreita,
esperando o lazarento. E foi quando o maldito pulou do mato, envolto em sua
capa e soltando aqueles urros de enlouquecer qualquer um. Epaminondas soltou um
palavrão e falou:
·
Seu satanás dos infernos, venha aqui me pegar,
você só ataca as mulheres, chegue aqui que sou cabra-macho e de saco roxo. Os
dois ficaram frente a frente; daí um estampido foi ouvido e o Diabo caiu no
chão, não se mexia! Todos que escutaram o som do projétil, principalmente na
fábrica, correram para o local e constataram uma cena terrível: teria morrido?
Epaminondas, ainda com o revólver na mão, pediu que ninguém chegasse perto e
mandou alguém telefonar para o Joaquim Linguiça vir o mais rápido possível, para
examinar o corpo do infeliz. Lá chegando, o Delegado notou que uma máscara
envolvendo seu rosto estava meio solta.
Com as mãos trêmulas, hesitou em retirá-la: quem seria aquela pessoa
travestida de Diabo? Pensou nos seus trinta e cinco anos de carreira, onde
nenhum fato daquela natureza tinha acontecido, era um momento de júbilo para
Joaquim. Sua velha memória começou a divagar, pensou na promoção que o fato
poderia lhe dar, conseguindo uma aposentadoria com vencimentos mais altos.
Num repente, pediu que chamassem a reportagem do jornal, queria ter o
privilégio de sair na foto e a manchete poderia lhe render tudo o que pensou
naqueles minutos. Então o que se passou foi inenarrável!
Para o espanto de todos, foi constatado pelo velho policial, que o Diabo era
o popularíssimo Gerubal Pascoal, Chefe do Pessoal.
O povo todo da cidade, por vários dias, ficou comentando a tragédia. A
Polícia, capitaneada pelo glorioso Joaquim Linguiça, foi até a casa do Gerubal
interrogar a mulher. Ela acabou confessando que fez a fantasia do Diabo e
comprou aquela máscara que cobria o rosto em uma loja da cidade, dizendo que
ele estava fazendo aquilo, porque tinha família para sustentar e muito receio
de ser mandado embora pelo Sr. Salim.
O empresário ficou apavorado e fugiu para a Turquia, pois, de certa maneira,
foi o mentor intelectual do caso; deixou no seu lugar o filho, que não tinha
experiência nenhuma com o negócio, e faliu rapidamente, ficando muita gente sem
receber nenhum centavo da empresa.
Hoje em dia, o local está abandonado; depois da falência, um supermercado se
instalou e logo também faliu; depois veio uma rede de grande marca que, também,
não teve sucesso; depois uma concessionária que também não deu certo. Todos os
empresários que tiveram seus negócios ali diziam que, nas manhãs frias de
inverno, aparecia o fantasma do Gerubal, urrando e pedindo o dinheiro de sua
indenização.
Esse caso virou uma lenda na cidade e até hoje, pelos cantos escuros, se
fala da história do Diabo que atacava as mulheres da Tecelagem da Japy.