Toda volta ao lar carrega uma sombra do que fomos e do que deixamos para trás. Este relato, embora singelo, mergulha nos desvãos da memória e nas marcas que o tempo não apaga. Um reencontro com o país, com um velho conhecido, e com uma história que, sob a superfície da lembrança, revela nuances de época, desejo e transformação. Entre a burocracia de um banco e a surpresa de uma conversa inesperada, o narrador se vê diante de uma narrativa escolar que insiste em não se apagar — como marcas de giz num quadro velho.
Depois de anos colhendo invernos e verões longe das raízes, regressei ao Brasil num dezembro abafado, onde o céu parecia guardar em nuvens espessas as lembranças que só a saudade desperta. A cidade, mesmo em festa, exalava uma melancolia escondida entre fachadas envelhecidas e atendentes apressadas — como aquela do banco, que me mandou “pegar uma senha” para falar com o gerente. Costumes que me pareceram tão estranhos quanto familiares, como quem reconhece um perfume antigo sem saber de onde vem.
Na sala abafada do banco, enquanto o gerente consultava papéis e me falava de taxas e aplicações, vislumbrei um Brasil que me escapara. Um país burocrático, envelhecido pelas suas próprias regras, mas ainda vivo nos detalhes dos gestos.
Na saída, fui surpreendido por uma voz — quase um sussurro do passado. “Vendramini, é você?” disse um homem que parecia ter saído de uma fotografia desbotada. Chicão, dos tempos de ginásio. Seu rosto tinha marcas novas, mas o brilho nos olhos era o mesmo de quando o recreio parecia durar para sempre.
E foi então que ele, com entusiasmo juvenil, começou a falar de “nossa” professorinha de francês. E os olhos de Chicão iam longe, muito além da sala de aula. Falava dela como se fosse personagem de um romance proibido — as blusas transparentes, as saias ajustadas, os gestos delicados como notas musicais em uma língua que não dominávamos. Narrava cada cena com detalhes vívidos, como se aquela mulher tivesse sido escrita em sua memória com tinta indelével.
Mas nem todo encantamento é inocente. A história que ele contava culminava numa expulsão: a dele. Os limites entre admiração, desejo e desconforto se embaralhavam. E eu, ouvindo aquele relato, percebia mais do que o passado escolar — via ali os reflexos de uma época marcada por silêncios e permissividades disfarçadas de ingênua convivência.
Na despedida, Chicão ainda quis saber se percebi alguma mudança no país. E eu, com o coração cheio de memórias, disse que sim. Que o Brasil havia mudado — talvez para fora, talvez para dentro —, e que agora, mais do que nunca, os ruídos entre os poderes tentavam abafar os sons suaves da esperança.
ECOS DE OUTRORA
Entre as vozes do presente, percebo que nossas memórias não apenas resistem — elas se transformam. A professorinha de francês talvez tenha sido mais que uma mulher: foi o símbolo de uma juventude em disputa com os próprios limites, num país ainda em busca de si mesmo.
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