O Tonella e o Saci Pererê
A manhã estava fria. Nuvens cinzentas pairavam no céu, carregadas de
umidade, trazendo sobre minha casa uma garoa intermitente que acentuava o frio
dos últimos dias. A água, tão escassa, agora escorria suavemente pelas ruas,
alimentando a vegetação ressequida.
Pela vidraça, vi a rua deserta: portas fechadas, janelas trancadas, um
silêncio que indicava o recolhimento das pessoas naquele domingo cinzento.
Não saí para comprar o tradicional jornal. Apanhei o da semana anterior e
comecei a folheá-lo com mais atenção. Na página do obituário, um nome familiar
saltou aos meus olhos: um homem que, há tempos, havia me encantado com uma bela
lenda sobre o pássaro Uirapuru—símbolo de felicidade nos negócios e no amor.
Com aquele pensamento, coloquei lenha na lareira, acendi o fogo e me
acomodei no sofá. As labaredas dançavam, soltando estalos, despertando memórias
das histórias que meu avô, Tonella, costumava contar.
Foi então que percebi algo incomum: um fino rolo de fumaça, acumulado no
alto da viga mestre, começou a formar um arco translúcido. Dentro dele, uma
sombra tomou forma.
Meu coração acelerou. Aos poucos, a figura se definiu… Era Tonella, saindo
das entranhas do tempo, trazendo seus inseparáveis apetrechos para enrolar seu
cigarro de palha.
Ele pisou firme no chão e se acomodou na velha cadeira de balanço, onde, na
infância, nos reuníamos ao seu redor para ouvir suas histórias.
Com a mente imersa na visão, lembrei do dia em que ele contou sobre o famoso
Saci-Pererê. Ajustou-se na cadeira, pegou um punhado de fumo, enrolou-o na
palha e acendeu. O cheiro se espalhou pelo ambiente, trazendo lembranças dos
tempos em que ouvíamos seu relato, os olhos brilhando de encanto e medo.
— Olha, molecada, vou contar, mas não quero ninguém mijando nas calças!
— Não, “nonno”! Pode contar! Somos grandes!
De repente, outro estalo da lenha ecoou pela sala e, do arco enfumaçado,
surgiu uma figura pequena e irrequieta: o próprio Saci! Pulando numa perna só,
ele veio direto ao colo do Tonella.
— Seu moleque do inferno, de onde você saiu?
— “Vosmicê falô di eu, então vim qui pra mód’ocê num fala mintira!"
Tonella, conhecendo bem as artimanhas do Saci, advertiu:
— Nada de bagunça aqui! Só ouve!
— “Quá nada, véio lazarento! Gosto mermo é de vê ocê contá mentira! Agora,
me dá um fumo pru meu cachimbo, pra sortá fumaça igual ocê!"
— Não! Já tem fumaça demais aqui!
Tonella arrancou-lhe o cachimbo, deu um puxão de orelha e o mandou ficar
quieto.
Então, retomou a história:
— Molecada, o Saci gosta de aprontar! Esconde brinquedos, solta animais dos
currais, derrama sal na cozinha e trança a crina dos cavalos! Não atravessa
riachos. Dizem que pode ser capturado se preso num rosário de mato bento ou
numa peneira. E, se alguém lhe tirar o capuz, pode conseguir um desejo!
Tonella olhou para o arco de fumaça e, de lá, surgiu meu pai, Vico. Ele
estendeu a mão para o avô e ambos sumiram no túnel do tempo. O Saci, rápido
como sempre, correu, pegou seu cachimbo do bolso do Tonella e desapareceu.
O som da campainha me trouxe de volta à realidade. Pela janela, vi minha
família chegando: meu filho Alexandre, o neto Augusto,
minha filha Erika e o marido, junto com o Lucas.
Antes que se acomodassem no tapete, olhei para o canto da sala. A cadeira de
Tonella ainda balançava sozinha.
Sem hesitar, tomei o assento.
Era minha vez de contar histórias.
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