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segunda-feira, 12 de maio de 2025

O SOM DAS SOMBRAS DO PORÃO

NAQUELA NOITE FRIA...

O eco das doze badaladas ressoou pelo quarto de dormir, trazido pelo imponente relógio da família, que há décadas dominava a sala de jantar e estar. Guardião das memórias, soberano em seu ofício, testemunhou incontáveis histórias, jantares memoráveis em que o patriarca, ladeado por sua esposa recatada, guiava os filhos pelas discussões cotidianas à mesa.

Naquela noite fria, o velho mecanismo continuava sua vigília, contando os passos dos habitantes da antiga casa, registrando a transformação das crianças felizes em adultos, que, um a um, foram deixando os pais reféns do último filho. Esse herdeiro solitário, imerso em reflexões furtivas, ouvia as ressonâncias do passado embaladas pelo compasso do relógio.

Enquanto a madrugada avançava, ele fitava a janela e via o tempo esgueirar-se. O sono, inclemente, recusava-se a chegar, e sua mente inquieta viajava em busca de respostas para os caminhos que se abriam à sua frente. Os pais, já muito idosos, haviam abandonado as descidas à sala de jantar. A governanta, tão envelhecida quanto o casal, cumpria suas funções com lentidão, levando-lhes o parco jantar e, ao passar pelo quarto do filho, murmurava que sua refeição estava no forno antes de se retirar.

Uma única badalada anunciou o início daquela madrugada gélida, acompanhada pelo sussurrar sinistro das árvores ao redor da casa. Pensamentos inquietantes começaram a se insinuar. Buscando distração, ele cogitou ligar a televisão, esquecida e quebrada havia anos. Tentou ler o livro à cabeceira, mas a mente fatigada se recusava a seguir a narrativa até o epílogo.

O silêncio, denso e sepulcral, foi rompido por um som vindo da cozinha, atravessando a ampla sala até seu quarto. Um ranger inquietante, como de porta mal fechada, desafiava seus ouvidos. Removendo as cobertas, calçou as chinelas e desceu, pé ante pé, as escadas que ladeavam o incansável relógio. A cada passo, o coração acelerava: teria alguém invadido a casa sem que os velhos percebessem?

Ao chegar à cozinha e acender a luz, a resposta revelou-se menos ameaçadora, mas igualmente intrigante. O velho gato da casa, cambaleando, subia as escadas do porão. Guiado pela curiosidade, ele seguiu o animal até as profundezas escuras, onde a ausência de luz exacerbava o cheiro de umidade e o mistério do lugar.

Munido de um lampião, cuja chama tímida mal dissipava as trevas, o filho desceu ao porão. Lá, encontrou a origem do ruído: uma caixa de papelão cheia de fotografias antigas, usada pelo gato como refúgio. O vento, sibilando pelo respiro na parede, fazia a tampa entreabrir-se e ranger.

Sentou-se em uma velha cadeira, resgatando da caixa fragmentos de seu passado. Cada fotografia parecia reanimar cenas há muito adormecidas: rostos sorridentes, momentos congelados no tempo. Entre sorrisos e lágrimas, separou algumas imagens para compartilhar com o pai, buscando compreender quem eram certos visitantes cujas lembranças se esvaneciam.

No entanto, ao raiar do dia, ao levar o café e as fotos aos pais, a vida reservava um desfecho silencioso e inevitável. Encontrou-os sem vida, marcados pela última badalada do velho relógio, que agora era o único guardião das memórias daquela casa. Restavam-lhe as fotografias e a missão de preservar a história da família – um legado envolto na eternidade dos instantes capturados.


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 Às vezes, basta abrir a janela para viver uma história. E é essa jornada de aprendizado e aperfeiçoamento que desejo compartilhar com vocês.

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