Ouviu-se do quarto de
dormir o som das doze badaladas produzidas pelo imponente relógio da família, postado
na sala de jantar e estar. Soberano em todos os seus momentos, registrou muitas
histórias contadas ao redor da mesa de jantar da família em seu esplendor,
marcando horas felizes, naqueles jantares memoráveis, onde os assuntos do
cotidiano eram debatidos pelos filhos, sempre com a mediação do patriarca e sua
recatada esposa.
O antigo mecanismo ainda se
fazia presente naquela noite, marcando com os seus sons matutinos e vespertinos,
os passos dos personagens da casa secular, contabilizando o desencadear de suas
vidas, transformando as alegres crianças em adultos que, aos poucos, foram
deixando os pais refém do último filho...
Esse, nos momentos de reflexões
que ali passava, com seus pensamentos furtivos, ouvia o marco dos devaneios
daqueles momentos que ficaram no passado.
Olhou para a janela e observou
que já era noite, começando a madrugada. O sono não chegava e a mente
trabalhava incessantemente, procurando encontrar qual seria o seu caminho, o
que viria pela frente. Os seus pais muitos idosos já não desciam para a sala de
jantar. A governanta, que beirava a idade do casal, ainda conseguia arrastar os
pés e levar o pequeno jantar para os velhinhos. Na passagem pelo seu quarto,
sempre dizia que a sua comida estava no forno e que ela iria deitar-se.
Nesse ínterim, o relógio
marcou uma badalada, a primeira daquela fria madrugada; o farfalhar das árvores
ao redor da casa trazia pensamentos malignos. Pensou em ligar a televisão, mas
lembrou-se que estava quebrada já fazia muitos anos. Tentou, então, ler o livro
que estava à sua cabeceira e que não conseguia chegar ao epílogo, pela preguiça
mental que embaralhava os assuntos em sua mente perturbada.
O silêncio era profundo e
sepulcral. Foi quando ouviu um barulho que vinha da cozinha, passava pela
imensa sala e penetrava em seu quarto. Era uma espécie de ranger de porta
aberta que se lançava sobre o batente e espocava, como um estampido, em seus
ouvidos.
Removeu as cobertas, calçou
as chinelas e começou a descer as escadas, passando pelo relógio que pendulava
sem parar, marcando aquele momento angustiante. Seria a porta batendo, seria
alguém que teria se infiltrado sem que os velhos notassem presença?
Continuou a descer na ponta
dos pés; chegando à cozinha, acendeu a luz e viu, para seu espanto, o velho
gato da casa caminhando com dificuldade, subindo as escadas do porão. Foi até
lá, mas o local estava muito escuro e não havia luz para iluminar a escada e,
muito menos, o ambiente do fétido compartimento encravado no subsolo, mais
parecendo um bunker, onde todas as tralhas, móveis e outros objetos não mais
utilizados estavam à mercê daquela escuridão, que servia de esconderijo ao
gato.
Buscou, próximo dali, um
lampião de gás, cujo bujão prendia-se ao vidro. Levou-o até a cozinha e riscou
um fósforo e a chama propagou; e percebeu que tinha uma pequena reserva,
suficiente para uma inspeção no porão, para ver de onde vinha aquele ruído que se
tornava, agora, mais acentuado.
Notou, então, que a tampa
da caixa de papelão que continha velhas fotografias estava encostada à parede;
ali o gato fez sua cama e, quando saía, ficava entreaberta; o vento penetrava
pelo respiro na parede que vinha da rua e provocava aquele som.
Apanhou a caixa, aproximou
do lampião e sentou-se em uma velha cadeira, uma vez que naquela casa tudo era
velho, e começou a esmiuçar fotos antigas de quando era menino. Viu, a cada
foto que passava por suas mãos, como em um passe de mágica, todo o passado de
sua vida.
Olhou, com alegria, todos
os personagens daquela casa ainda jovens; seu pai, que tanto idolatrava, estava
sempre presente nas fotos e ele é quem organizava as posições para as fotos,
quem ficava em pé, sentado ou no colo da mãe.
Nesse vai e vem de fotos, separou
algumas para mostrar ao velho pai, para saber de alguns personagens que
visitavam o seu lar de que já não se lembrava mais e, certamente, o patriarca
faria longos comentários detalhados daquelas pessoas.
Sentiu, então, que sua sina
era cuidar dos pais até o seu final e, depois, pensar em se casar para dar
continuidade à família e zelar pelo sobrenome muito respeitado no local onde
moravam.
Percebeu que o dia já
raiava, subiu pelos degraus, chegou à cozinha, tomou um café, e falou para a
governanta sobre aquelas fotos que tinha nas mãos e estavam naquela caixa de
papelão e que mostraria aos velhos.
Bateu à porta do quarto e,
como não respondiam, entrou com cuidado e verificou que os dois velhinhos
tinham falecido naquela noite, sob o som das badaladas daquele relógio que
marcou a vida e transformou aquela casa em um reduto de lembranças, onde apenas
as fotografias ficaram para contar a história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário