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Valdemar era um paulistano da gema, uma pessoa muito educada e bem vivida, se trajava muito bem, mantinha sempre a barba e cabelos aparados e unhas cortadas, calçados engraxados e lustrosos. Nas suas viagens como caixeiro-viajante, antes de visitar um cliente, utilizava uma loção, mantendo sempre a postura de uma pessoa bem asseada. Muito gentil, utilizava um vocabulário impecável, devido ao seu bom grau de escolaridade.
Sabia, como ninguém, demonstrar os produtos que representava, colocando argumentos convincentes, resultantes em um belo pedido para a empresa em que trabalhava. Tinha uma ótima clientela espalhada pelo interior do Estado e uma boa parte do sul de Minas Gerais.
Em uma segunda-feira, pela manhã, quando se dirigia para o escritório da empresa, disse para a esposa, que sempre o ouvia com um sorriso nos lábios:
- Olha, hoje à noite, tenho que viajar para o sul de Minas, para fazer toda aquela região e volto na quinta-feira; prepare, então, um bom jantar, que vou sentir falta de sua comidinha gostosa.
Lá pelas vinte horas chegou apressado, querendo jantar, pois logo mais tinha um jogo de futebol do seu amado Corinthians, que seria transmitido pela televisão; e não queria perder, porque o Ronaldão Fenômeno estaria presente.
Terminou o jantar, beijou Alzira e começou arrumar a mala de viagem; nesse momento, lembrou-se do jogo, ligou a TV que ficava em sua bela sala, toda cercada de cortinas, e a tela abriu com o timão entrando em campo. Foi uma alegria quando ouviu o repórter entrevistando o Ronaldão, que prometeu marcar dois gols.
Deu um sorriso e falou para Alzira:
- Quero ver se ele vai fazer mesmo, está muito mascarado!
Enquanto o jogo se desenrolava, nos momentos de marasmo, corria para o quarto, apanhava as roupas e ia colocando na mala que já estava na sala, para não perder as jogadas. No momento em que estava no quarto, Ronaldão marcou um gol, ele veio correndo para a sala e soltou um palavrão:
- M... Perdi o gol! Será que vão repetir a jogada?
Na repetição, se deleitou com o gol e falou para Alzira.
- Não é que o gordo está cumprindo com a palavra! Só falta mais um.
Num daqueles momentos de monotonia do jogo, pensou: “vou buscar o meu par de sapatos sobressalentes”.
Abriu a sapateira e apanhou um par, quando ouviu a voz do locutor se encher de emoção, porque Ronaldão fez mais um. Veio correndo para a sala, com o par de sapatos na mão e ficou pulando na sala que nem um moleque. Abraçou Alzira, deu uma tapa na bunda e disse:
-Sempre que faço isso dá sorte! Êta bunda boa!
Foi então colocar os sapatos na mala; começou a embrulhá-los com um pano, para não sujar a roupa e percebeu que estavam sujos. Pensou em ir trocá-los, mas, naquele momento, o jogo estava bom e ficou com aquele par na mão. Pensou então: “Vou deixá-los aqui perto da cortina; pego outro e depois eu limpo esse aqui e deixo na sapateira”. Só que o jogo estava emocionante... Ele colocou na mala o calçado limpo, esquecendo-se de guardar aquele sujo, que ficou junto à parede com a biqueira voltada para a sala, e a cortina sobre o mesmo.
Valdemar exclamou:
- Vou embora, me dá aqui um beijo, vou assistir o restante do jogo no rádio do carro; o Ronaldão já fez dois e, agora, é só alegria.
Foi embora para chegar logo pela manhã no local de destino.
Alzira, que já estava meio sonolenta, foi deitar em seu quarto, sem desligar a televisão. Acordou no meio da noite e ouviu vozes... O que seria? Será algum ladrão? E foi, na ponta dos pés, para a sala de onde vinham as vozes. Então pensou: “Aquele maluco foi embora e não desligou a televisão”. Foi mais perto para desligar, quando viu, debaixo da cortina, aqueles calçados esquecidos por Valdemar. Pensou rapidamente: “É um ladrão, e está escondido atrás da cortina; e se ele avançar para cima de mim? É melhor chamar a policia”.
Ligou para o 190 e pediu urgência, fornecendo o endereço e tudo o mais. Depois de uns quinze minutos, bateram à porta. Foi correndo abrir e deu de cara com um homem corpulento que logo se identificou como o sargento Nepomuceno.
- Pois não, minha senhora, o bandido está ainda aí?
- É, eu desliguei a TV e vi aqueles sapatos que ainda estão lá embaixo da cortina; vá logo para prender o ladrão.
Nepomuceno sacou de seu revólver trinta e oito e foi em direção à cortina na ponta dos pés; removeu-a com um golpe rapidíssimo e... o que estava lá atrás? Ninguém! Foi tudo uma ilusão de ótica da sonolenta e medrosa Alzira.
Ela parou de tremer, ficou calma e começou a agradecer ao sargento que não “tirava” os olhos de seu corpo, uma vez que estava com roupas íntimas e nem tinha se percebido. Começou uma conversa mole do sargento ‘blábláblá’, pedindo um copo de água, que ela foi buscar; e ele viu aquele corpo bonito, coberto apenas por uma roupa transparente, deixando ver todo o contorno de uma pequena calcinha branca, contrastando com o pano preto da capa rendada.
Alzira percebeu, então, a burrada que tinha feito em atender a um estranho com aqueles trajes. Quando voltou, o sargento perguntou se tinha café e estava prolongando a conversa que ela não respondia, transformando-se em um monólogo.
Ela agradeceu e pediu que se retirasse, porque já era tarde e estava com sono. Voltou para a cama e dormiu profundamente até à tarde do dia seguinte. Passado mais um dia, escutou batidas na porta da sala. Ficou temerosa e olhou para o corpo, para ver se estava trajada decentemente e perguntou:
- Quem é?
Do outro lado respondeu:
- É o sargento Nepomuceno; vim trazer os sapatos de seu marido, posso entrar?
Ela, então, percebeu que ele tinha levado os sapatos naquela noite, com o objetivo de retornar, para ver se conseguia algum sucesso em conquistá-la.
Foi quando Alzira falou:
- Pode deixar aí fora que, depois, eu pego.
- Mas eu limpei e engraxei os sapatos, estão brilhando; abra a porta e a senhora vai ver que beleza que ficou.
Apavorada, foi ao telefone, ligou para a Delegacia e denunciou o sargentão conquistador. Quando voltou para falar com ele, percebeu que não havia resposta. Virou a chave e abriu a porta, com cuidado, percebendo que os sapatos estavam na soleira.
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